É comum encontrar na internet discussões sobre sexualidade, questões morais e dinâmicas de gênero que rapidamente se transformam em disputas acaloradas. Esses debates tendem a se repetir em ciclos previsíveis, muitas vezes guiados por argumentações simplistas, interpretações enviesadas e conclusões que ignoram nuances essenciais. Em vez de promover investigação real, o ambiente costuma favorecer certezas frágeis, o que dá a ideias equivocadas a aparência de profundidade.
Como homem jovem, com frequência me deparo com conteúdos que retratam a sexualidade contemporânea como um território marcado por excessos e instabilidade. A impressão que se passa é a de que comportamentos promíscuos se tornaram regra, como se estivéssemos vivendo uma transformação radical na forma como as pessoas se relacionam. Essa sensação parece convincente num primeiro olhar, mas perde força quando examinada com mais atenção.
O objetivo deste ensaio é entender como essa percepção se constrói e por que ela se mantém, mesmo quando carece de respaldo claro na realidade. Mais do que defender pontos de vista, a intenção é investigar o contexto cultural e social que influencia a forma como enxergamos o comportamento sexual — especialmente num tempo em que distorções se espalham com facilidade e passam a moldar nossas expectativas, nossos julgamentos e nossos vínculos.
Compreender por que a sociedade contemporânea parece tão obcecada por temas ligados à sexualidade exige partir do funcionamento básico da mente humana. Nossa capacidade de interpretar o mundo não opera de forma neutra, mas por meio de atalhos cognitivos que priorizam o extraordinário e negligenciam o comum. O cérebro é naturalmente atraído por histórias emocionalmente intensas, moralmente marcadas ou fora do padrão — elas provocam maior impacto biológico e social. Por isso, eventos raros se tornam salientes em nossa consciência, enquanto comportamentos cotidianos desaparecem no pano de fundo da experiência. A percepção pública da sexualidade segue essa mesma lógica: exceções visíveis moldam a narrativa, mesmo quando têm pouca representatividade estatística.
Essa distorção se intensifica dentro do ambiente cultural da pós-verdade. O termo não se refere apenas à propagação de informações falsas, mas a um contexto no qual emoções, identidades e vínculos grupais ganham mais peso do que dados, análises e evidências. Em temas carregados de implicações morais — como o comportamento sexual — a pós-verdade cria terreno fértil para simplificações e julgamentos apressados. Opiniões ganham força não por estarem fundamentadas, mas pela repetição com que são veiculadas e pelo impacto emocional que produzem.
As redes sociais amplificam esse efeito ao reorganizar nossa percepção cotidiana. Algoritmos priorizam conteúdos que maximizam a atenção, e nada cumpre melhor esse papel do que erotização, conflitos e julgamentos morais. A exposição constante a esses estímulos cria a impressão de que são representativos da realidade, quando, na verdade, são apenas mais visíveis. Filosoficamente, isso altera nossa relação com a verdade; culturalmente, redefine o que se entende por normal; psicossocialmente, nos torna mais sensíveis — e muitas vezes mais reativos — ao comportamento sexual do outro.
O resultado é um ambiente no qual qualquer pessoa, independentemente de instrução, estilo de vida ou posição ideológica, pode se tornar refém de distorções cognitivas. Ninguém está imune à pós-verdade. A única forma de resistir à tentação de reduzir indivíduos a estigmas e escapar das ilusões moldadas por narrativas sedutoras é desenvolver uma postura crítica sustentada por observação, análise e distanciamento. Isso exige esforço consciente — porque pensar com rigor sempre custa mais do que repetir frases prontas.
O sociólogo Zygmunt Bauman usou o conceito de "modernidade líquida" para descrever um mundo onde vínculos e estruturas se tornam cada vez mais instáveis. Relacionamentos deixam de ser vistos como compromissos duradouros e passam a ser experimentados como conexões frágeis, muitas vezes descartáveis. A sexualidade e o afeto, nesse ambiente, são afetados diretamente. As relações afetivas se tornam mais rápidas, mais inseguras, mais moldadas por expectativas voláteis e menos amparadas por referências sólidas.
Essa liquidez, no entanto, não é apenas uma característica dos tempos atuais — ela é também o pano de fundo no qual discursos simplificadores se alimentam. Quando a insegurança se torna regra, muitos buscam explicações rápidas para sentimentos difíceis de processar. E é nesse ponto que o diagnóstico da modernidade líquida, embora valioso, pode ser mal utilizado. Há quem tome essa visão como justificativa para reduzir toda complexidade humana a slogans sobre uma suposta “decadência moral” de uma geração, de um gênero ou de uma orientação sexual.
Mas relações frágeis e comportamentos instáveis não são exclusivos do nosso tempo. O que muda, sobretudo, é a visibilidade que eles adquirem — e como são interpretados. As redes sociais e a mídia, ao invés de apenas retratarem essas mudanças, muitas vezes as amplificam. Elas criam microtendências, viralizam comportamentos, moldam padrões de desejo e oferecem modelos de identidade com uma velocidade que nenhuma geração anterior enfrentou. O que era exceção passa a parecer regra; o que era uma escolha individual se transforma em símbolo cultural.
Nesse contexto, o amor vira estética. A intimidade é performada. E a liberdade, frequentemente, se confunde com obrigação de se expor. Os algoritmos favorecem o que choca, seduz ou polariza — e esse filtro digital distorce nossa percepção do que realmente está acontecendo à nossa volta. Ao consumir essas imagens e discursos como se fossem representações fiéis da realidade, muitos acabam reforçando a falsa noção de que todos estão vivendo relações descartáveis, sexualidades vazias e afetos meramente estratégicos.
Por isso, apesar de existirem elementos reais de fragilidade nos vínculos contemporâneos, ceder a leituras reducionistas só reforça um ciclo de confusão. Entender a influência da modernidade líquida é útil; responsabilizar indivíduos por um fenômeno sistêmico não é. A crítica profunda exige mais do que repetir frases prontas — exige observar com atenção, diferenciar sintomas de causas e resistir à tentação de encontrar culpados onde, na verdade, existem apenas dinâmicas complexas.
Vivemos uma época em que perguntas difíceis recebem respostas fáceis — ou pelo menos é isso que muitos esperam. Questões profundas sobre afeto, identidade e sexualidade são frequentemente reduzidas a frases de efeito, diagnósticos apressados e fórmulas prontas que circulam com velocidade impressionante. A cultura de massa, alimentada por redes sociais e mecanismos de busca, oferece um cardápio amplo de explicações instantâneas para inseguranças que, em outros tempos, exigiriam reflexão, amadurecimento e autoconhecimento.
Essa busca por respostas rápidas não é à toa. Em um mundo cada vez mais ansioso, acelerado e instável, o desconforto psicológico vira solo fértil para ideologias simplificadoras. Discursos que prometem restaurar a ordem, resgatar valores “perdidos” ou revelar “verdades escondidas” se tornam especialmente atraentes. Não porque sejam consistentes, mas porque oferecem clareza onde reina a confusão.
A cultura de massa, nesse cenário, não apenas responde às dúvidas — ela também fabrica as próprias dúvidas. Estímulos constantes em torno de sucesso, desejo, competição e aparência fazem com que pessoas questionem sua própria adequação o tempo todo. Homens e mulheres se comparam, se julgam, se analisam com base em padrões que mudam semanalmente, impulsionados por microcelebridades digitais, gurus de comportamento e algoritmos viciantes.
É nesse ambiente que termos como “valor de mercado”, “hipergamia”, “masculinidade de verdade” e “liberdade sexual plena” ganham força. Eles não vêm de um esforço coletivo para entender melhor o ser humano, mas de um esforço mercadológico para capturar atenção e vender soluções — seja na forma de produtos, cursos, influenciadores ou modelos de vida.
A ironia é que quanto mais essas fórmulas se multiplicam, mais frágeis parecem os indivíduos que as consomem. Ao invés de promover autonomia, muitos discursos da cultura de massa criam dependência. Ao invés de estimular a reflexão, reforçam padrões estreitos de comportamento. E ao invés de construir pontes entre as diferentes formas de viver a sexualidade, erguem muros de julgamento, medo e desinformação.
Essa dinâmica explica por que tantas pessoas se sentem deslocadas: elas não vivem o que veem nas telas, não sentem o que se espera que sintam e não encontram sentido em regras que mudam o tempo todo. E, diante disso, a pergunta mais silenciosa que paira no ar é: “Será que tem algo de errado comigo?” — uma dúvida legítima que, quando ignorada ou ridicularizada, alimenta ressentimentos profundos.
Grande parte da radicalização masculina em torno da sexualidade nasce de um lugar afetivo mal elaborado. Por trás das manifestações de ressentimento, controle ou julgamento moral, frequentemente há sentimentos não acolhidos de insegurança, medo e desejo por afeto exclusivo. Homens que se sentem desconfortáveis com o passado sexual de suas parceiras, por exemplo, raramente encontram espaços maduros para refletir sobre esse incômodo. Em vez disso, enfrentam dois extremos: por um lado, a vergonha de sentir algo considerado “problemático”; por outro, o alívio superficial de doutrinas que transformam essa dor em doutrina.
É nesse cenário que os discursos redpill ganham força. Ao invés de promoverem questionamento, introspecção ou crescimento emocional, esses grupos oferecem respostas fáceis. Dizem que uma mulher "de valor" é aquela com pouca ou nenhuma experiência, que homens devem evitar vínculos com parceiras que já viveram outros afetos, e que tudo isso se justifica por uma suposta “natureza masculina”. Assim, o que poderia ser apenas uma idealização romântica, mesmo que infantil, se converte em uma estrutura argumentativa rígida, supostamente lógica, mas carregada de distorções.
Esse tipo de narrativa tenta converter o afeto em cálculo. A dor da rejeição, o medo de não ser único, a angústia diante da comparação — tudo isso, que deveria ser elaborado com cuidado e escuta, vira munição para ideias perigosas sobre superioridade, pureza e controle emocional. Ao transformar uma questão íntima em critério de valor absoluto, essas doutrinas empobrecem tanto os sentimentos quanto os vínculos que poderiam surgir deles.
Em situações mais extremas, surgem argumentos completamente desonestos. Um dos mais recorrentes é a tentativa de associar o desejo por uma mulher com pouca experiência sexual à pedofilia. Esse argumento é, além de falacioso, ofensivo em múltiplas camadas. Não apenas porque banaliza um dos crimes mais graves que existem, mas porque anula a complexidade por trás do sentimento — que, por mais idealizado ou imaturo que seja, nasce de símbolos afetivos legítimos e da maneira como muitos homens foram socializados. Trazer esse tema ao debate de forma crítica é necessário; tratá-lo com desonestidade retórica apenas reforça o ciclo de culpa, silêncio e radicalização.
Vale reforçar: preferências idealizadas — como o desejo por exclusividade sexual — não são ilegítimas por si só. O problema surge quando essas expectativas são projetadas sobre outras pessoas como exigências absolutas, ou quando servem de justificativa para rejeições agressivas, controle ou desvalorização da experiência alheia. Ainda mais grave é quando esse desejo por exclusividade é tratado como propriedade, como se a história afetiva de uma mulher fosse uma “mancha” em seu valor relacional. Essa lógica transforma afeto em planilha, e relações humanas em contratos desiguais.
Além disso, esses discursos não nascem apenas da frustração individual. Eles também se alimentam de normas culturais e sociais que homens e mulheres aprendem desde cedo. A ideia de que o homem “busca” e a mulher “cede” ao sexo é um mito persistente, que transforma o desejo masculino em objetivo e o feminino em obstáculo — algo a ser vencido, conquistado ou comprado. Nesse cenário, a sexualidade deixa de ser encontro para se tornar negociação.
Infelizmente, ao tentar combater esse modelo, muitas críticas acabam falhando por adotarem o mesmo tom extremo. Ao invés de propor reflexão, reforçam a polarização. Quando todo homem que expressa insegurança é tratado como um opressor em potencial, o debate se fecha. E quanto mais o afeto é ridicularizado, mais fácil é para doutrinas como o redpill se apresentarem como "refúgio para homens sensíveis".
Mas há um caminho possível. Em vez de negar os sentimentos, é preciso desarmá-los com honestidade. Sim, é compreensível querer ser único na vida de alguém. Sim, é legítimo se sentir inseguro diante da história afetiva de quem se ama. Isso não torna ninguém perverso, fraco ou moralmente falho. O que diferencia o afeto do ressentimento é justamente o modo como lidamos com ele: se usamos para compreender melhor a nós mesmos e construir algo com o outro — ou se o transformamos em trincheira contra a própria possibilidade do amor.
O problema não está no sentimento em si, mas na doutrina que o transforma em regra, na narrativa que o usa como arma e no medo que impede o amadurecimento. A vulnerabilidade masculina precisa ser compreendida como parte da condição humana — mas não pode servir de desculpa para comportamentos que negam a autonomia, a dignidade ou o afeto do outro.
É impossível ignorar que, historicamente, as mulheres foram condicionadas a associar seu valor à sexualidade. Mas essa associação nunca foi sinônimo de liberdade. Mesmo nos momentos em que discursos de emancipação pareciam se expandir, o que se via, com frequência, era uma transformação do controle — não sua eliminação.
Embora hoje o problema pareça mais evidente nas redes sociais, a performance social da mulher vem de muito antes. Desde os anos 1950, por exemplo, a mídia já vendia uma imagem idealizada da “esposa perfeita” — domesticada, obediente e esteticamente impecável. A lógica permanece, apenas muda de forma. Agora, o ideal feminino é hiper sexualizado, aparentemente autônomo e apresentado como sinal de empoderamento. Mas será mesmo liberdade quando cada transformação é rapidamente absorvida e explorada por um sistema que lucra com a insegurança?
A indústria cultural opera por ciclos de destruição e reconstrução da identidade feminina. Antigos tabus são atacados, novos comportamentos são incentivados, mas tudo isso ocorre com o mesmo objetivo: gerar consumo. O discurso muda, mas o alvo permanece. Hoje, o apelo é que a mulher seja desejável — e deseje ser desejada. Se antes era preciso ser uma boa esposa, agora é preciso ser livre, ousada, segura, bem resolvida e, acima de tudo, visualmente perfeita. Caso contrário, não estará “à altura” do novo ideal.
A liberdade feminina, nesse contexto, foi convertida em capital simbólico. O sexo não é mais apenas prazer, afeto ou intimidade; ele é status, influência, engajamento e, muitas vezes, fonte de renda. E isso se torna ainda mais evidente quando analisamos o crescimento de mercados como o da estética, da pornografia independente ou das redes sociais baseadas em exposição íntima. Mulheres são incentivadas a transformar desejo em produto. E muitas o fazem, não porque são fúteis ou inconsequentes, mas porque foram ensinadas a entender o próprio valor como algo que depende da validação constante.
Claro que não se trata de dizer que toda mulher está presa a esse ciclo ou que não haja espaço para agência individual. Existem mulheres que desafiam esse sistema e que criam outras formas de se posicionar no mundo. No entanto, a estrutura continua impondo um jogo invisível, no qual a autenticidade feminina precisa sempre se equilibrar entre dois riscos: ser apagada ou ser consumida.
É nesse ponto que a análise se torna ainda mais complexa que a masculina. Porque, enquanto o sofrimento do homem está geralmente ligado a uma frustração identificável — como o fracasso em atingir um ideal ou a rejeição afetiva —, o sofrimento da mulher é mais disperso. Ele aparece como angústia, cansaço, confusão identitária e até vergonha por não entender o que, exatamente, está gerando tanta dor.
Esse sofrimento não é facilmente nomeável. Ele não está em um único ponto de falha, mas em mil pontos de tensão cotidiana. Está no excesso de exigências contraditórias: seja livre, mas não vulgar; seja desejável, mas não promíscua; seja forte, mas não insensível; seja autêntica, mas esteja sempre dentro do esperado. É um jogo de regras mutáveis, em que perder é inevitável, e vencer só é possível ao custo da própria saúde mental.
E então surge a pergunta inevitável: onde está o homem em tudo isso?
A relação entre os gêneros não é tudo, mas também não é irrelevante. A mulher que se expõe, que performa, que se adapta a padrões irreais de sexualidade e beleza, o faz em um ecossistema onde o olhar masculino ainda é central. Não exclusivamente masculino, mas majoritariamente, já que a cultura do desejo foi moldada sob essa ótica por muito tempo. Quando se diz que “mulheres fazem isso por outras mulheres”, não se percebe que esse “outras mulheres” também foram moldadas dentro dessa estrutura.
Nos discursos redpill, a mulher é constantemente o foco — seja como inimiga, ideal ou ameaça. Mas o que se esquece é que esses discursos também alimentam o sofrimento feminino. Uma mulher sob pressão constante não consegue ser autêntica. Ela grita, mas não sabe o que dizer. Diferente dos problemas masculinos, que geralmente são mais objetivos, os mecanismos de controle feminino são disfarçados de liberdade e, por isso, muito mais difíceis de identificar.
Essa diferença de estrutura gera uma assimetria profunda. O homem sofre por não alcançar um ideal. A mulher sofre por ser forçada a se tornar um. Um lida com a frustração da meta. A outra, com a impossibilidade da autenticidade.
Essa assimetria é reforçada por um sistema mercadológico que se aproveita da autonomia feminina. Quando a mulher ganha poder de compra, ela também se torna alvo de mais estímulos de consumo. Isso se manifesta na moda, na estética, no comportamento, e até nos discursos de “empoderamento” que são cuidadosamente desenhados para parecerem revolucionários, quando, na prática, são apenas novas formas de cobrar da mulher que ela seja algo vendável.
Tudo isso não significa que as mulheres sejam apenas vítimas passivas. Mas indica que, se queremos uma crítica verdadeira ao sistema de performatividade afetiva e sexual, ela precisa ser feita com cuidado, empatia e profundidade. E precisa também evitar a armadilha da moralidade simplista.
Porque, no fim, o que está em jogo não é apenas a sexualidade. É o afeto. É a possibilidade de ser, de se relacionar, de existir para além do desejo alheio. Nenhum ensaio será suficiente para resolver isso, mas talvez seja um bom começo para questionar o que, por muito tempo, foi tratado como normal.
É tentador atribuir à indústria cultural e ao mercado digital um papel de vilania clara, como se fossem entidades conscientes que conspiram para reduzir a subjetividade humana a cliques e conversões. Mas isso é uma ilusão reconfortante. O funcionamento real é mais sutil e mais perigoso. A indústria não é um agente moral, é um conjunto de sistemas, empresas, criadores, algoritmos e consumidores que, mesmo sem se coordenarem, geram padrões que afetam diretamente a construção da identidade e das relações humanas.
Não é necessário que exista um grande plano central. Basta que cada peça dessa engrenagem esteja operando para o mesmo fim: lucro, otimização, escala. Um criador de conteúdo que decide explorar temas sensíveis com estética provocativa não está, em sua perspectiva individual, tentando destruir o afeto. Ele provavelmente está tentando ganhar visibilidade, manter a audiência, conseguir parcerias. O problema é que essa lógica, quando replicada em massa, molda aquilo que entendemos como relevante, desejável e legítimo.
Ao mesmo tempo, o mercado não precisa dizer diretamente o que as pessoas devem querer. Ele apenas cria as condições para que certos desejos se tornem mais visíveis, mais recompensados, mais replicados. Produtos culturais, estéticos e simbólicos são expostos de forma intensa e estratégica, e a repetição gera normalização. As pessoas passam a querer o que veem. E o que veem é aquilo que mais gera engajamento, o que mais gera engajamento é o que mais reforça os vieses existentes.
É nesse ponto que surgem os ciclos de autofagia. Um influenciador consome um produto, mostra esse consumo a uma audiência, essa audiência reproduz o comportamento, e isso cria demanda para mais variações daquele mesmo produto. Quando essa lógica se estende a afetos e identidades, temos uma cultura onde pessoas reais começam a se moldar para se tornarem melhores versões de si mesmas no mercado simbólico. A sexualidade, a aparência, as opiniões e até as vulnerabilidades passam a ser moldadas por uma lógica de capital simbólico. O sujeito se converte em produto, produtor e consumidor simultaneamente.
Esse processo se intensifica com a autonomia financeira e cultural das mulheres. Por muito tempo, as mulheres foram condicionadas a buscar validação através da adequação. Com a abertura de novos espaços sociais, essa lógica não desapareceu. Ela apenas se adaptou. Agora, ao invés de apenas agradar um homem, muitas mulheres se veem pressionadas a agradar um público, a se mostrar desejável para o algoritmo, a representar um ideal de empoderamento que, no fundo, ainda exige a performatividade do desejo e da sexualidade.
A liberdade sexual, então, é frequentemente travestida. O discurso aparenta ser de emancipação, mas, na prática, apenas desloca o ponto de controle. A mulher não é mais dominada diretamente por um marido, mas sim por um conjunto de expectativas estéticas, narrativas de empoderamento padronizadas e exigências performáticas que fazem da sua autenticidade um ativo de mercado. Desejar, nesse contexto, deixa de ser um impulso íntimo e se torna uma obrigação. Não há mais espaço para o desejo como vínculo, como afeto, como experiência subjetiva. Ele precisa ser visível, replicável e rentável.
E isso não é uma exclusividade das mulheres. Os homens também passam a adotar padrões de performance afetiva, virilidade, status e controle emocional que são validados pelo mesmo sistema. Só que, diferente do universo feminino — que sofre pressões mais voláteis e contraditórias — o universo masculino é mais homogêneo. O homem é instruído a vencer, a conquistar, a dominar. Sua subjetividade é canalizada para objetivos que, se alcançados, garantem valor social. Mas, se falha, sua identidade inteira desaba.
Quando mulheres são moldadas por discursos que vendem liberdade enquanto reforçam expectativas estratégicas, ou quando homens são capturados por fórmulas que prometem poder, o que está em jogo não é apenas identidade de gênero. É algo mais profundo: a reconfiguração constante do afeto e do desejo como peças de uma engrenagem econômica.
Não vivemos exatamente em uma era de desejos livres, mas em uma era onde até o que acreditamos desejar é constantemente induzido. O desejo, antes de ser uma vontade genuína, é formatado pelo que vemos, pelo que consumimos, pelos afetos que aprendemos a valorizar e pelas imagens que associamos à realização. O problema não está em consumir ou fazer parte da cultura, mas em não perceber que, cada vez mais, o “eu quero” é uma simulação do “eu devo querer”.
Esse não é um plano orquestrado por uma entidade maligna que quer destruir o ser humano. A indústria não é um vilão consciente. Ela é um conjunto vasto de pessoas, empresas e iniciativas que, em sua maioria, estão apenas tentando lucrar, sobreviver, crescer — como qualquer agente em uma lógica de mercado. O que a torna perigosa é a soma das suas estratégias, a retroalimentação de tendências que visam otimizar lucro e, sem perceber, acabam otimizando também a simplificação das subjetividades humanas.
Porque quanto mais previsível for o comportamento, mais fácil é vendê-lo. Quanto mais padronizado for o desejo, mais barato é reproduzi-lo. E quanto mais raso for o afeto, mais ele cabe em uma campanha de marketing. Esse não é um cálculo feito com maldade, é feito com lógica. Um produto que se vende sozinho, se reproduz e se consome no processo é simplesmente mais lucrativo.
E nesse ciclo, o humano se torna mais eficiente quando se torna menos. Menos complexo, menos ambíguo, menos profundo. O afeto, então, vira função: algo que justifica um gesto, um estilo, uma imagem, mas que não exige vínculo real. A autenticidade é recompensada desde que performada dentro dos limites da estética vigente. A intimidade é válida desde que convertida em exposição visualizável. O desejo é legítimo, desde que monetizável.
Essa é a distorção central. Não é que sejamos forçados a algo. É que, aos poucos, esquecemos que poderíamos querer outra coisa.
A forma como nos relacionamos afetivamente carrega implicações que vão além do privado. Quando desejo, afeto e vínculo emocional passam a ser moldados por lógicas de engajamento, performance e consumo, há um impacto profundo no modo como enxergamos o outro — e a nós mesmos.
Falar, por exemplo, sobre prostituição é sempre espinhoso. Há mulheres que, de fato, parecem lidar com isso como uma escolha funcional, prática, muitas vezes isenta de sofrimento aparente. Algumas se sentem no controle, veem o sexo como trabalho e não demonstram grandes dilemas com isso. Talvez estejam realmente bem resolvidas — talvez não. É difícil afirmar. O ponto, porém, é outro: mesmo que o discurso da liberdade individual se sustente, nem toda escolha é isenta de consequências mais amplas.
Não é fácil — e talvez nem possível — dissociar totalmente o afeto da intimidade. Há algo que se dilui quando a entrega vira rotina comercial, quando o corpo se torna meio e não fim. Isso não é uma condenação moral. É apenas o reconhecimento de que o vínculo humano tem camadas, e nem todas sobrevivem à objetificação, mesmo consentida.
Ao mesmo tempo, há um conflito interno legítimo para quem cresceu idealizando o amor como exclusividade, entrega emocional e descoberta compartilhada. Quando esse ideal é confrontado por experiências diferentes — por exemplo, ao se apaixonar por alguém com um passado afetivo ou sexual muito distinto do seu — surge uma sensação difícil de nomear. Não é só machismo. É também insegurança, vaidade, orgulho, medo de comparação, talvez uma forma de luto simbólico de um ideal que nunca existiu de fato.
Não é justo tratar esse desconforto como se fosse apenas fraqueza moral. Mas também não é justo deixar que ele se transforme em julgamento ou rejeição automática. Porque, com o tempo, vínculos reais reconfiguram essas percepções. Com afeto, confiança e presença, o que parecia inaceitável vai perdendo força. A dor inicial cede espaço a algo mais profundo: a vontade de construir, de partilhar e de ser visto além da idealização.
O problema é que, na ausência de espaço para esse tipo de reflexão, muitos homens mergulham em discursos que oferecem respostas fáceis. Ao invés de desconstruir as idealizações, esses discursos as reforçam. E o mesmo acontece do lado feminino, quando o mercado oferece modelos de desejo e empoderamento que, na prática, só atualizam antigas formas de controle.
A consequência disso tudo é uma sociedade onde o vínculo afetivo vai se tornando cada vez mais frágil. Onde o outro deixa de ser alguém com quem se constrói uma história e passa a ser um espelho de nossas próprias inseguranças ou desejos. Onde até o amor precisa se adaptar ao algoritmo.
A saída talvez esteja em algo muito simples: reaprender a criar laços. A entender que nem toda ferida precisa virar doutrina. Que a liberdade não é fazer tudo, mas fazer o que tem sentido. E que afeto não se compra, não se performa, não se mede por planilha. Se constrói. Devagar, com presença, com escuta — e com disposição para desaprender o que o mundo nos ensinou sobre o que é “valor”.
A sensação de que vivemos um colapso afetivo, moral e sexual não é completamente inventada — mas também não é totalmente verdadeira. De fato, há uma exposição cada vez maior da intimidade, discursos extremistas ganham audiência, e a confusão entre liberdade e performance vira rotina. Só que a percepção de que “todo mundo está assim” é, em grande parte, fabricada.
Boa parte dessa impressão nasce do modo como consumimos informação. Os algoritmos das redes sociais reforçam vieses de confirmação, exibindo repetidamente aquilo que mais nos provoca — ou nos assusta. O feed do Instagram, os vídeos virais, os cortes de podcasts, tudo isso forma uma bolha visual e emocional que cria um mundo paralelo, onde parece que toda mulher é hipersexualizada, todo homem está ressentido, e o afeto virou um conceito ultrapassado.
Mas a realidade é bem menos distorcida do que parece. A maioria das pessoas ainda busca vínculos sinceros, ainda deseja reciprocidade, ainda sofre com rejeição, insegurança e solidão — mas também se esforça para construir relações reais, mesmo que falhas. O cotidiano afetivo é mais discreto do que os extremos digitais: casais que se cuidam longe das câmeras, pessoas que tentam amar com as ferramentas que têm, jovens que ainda desejam uma conexão verdadeira apesar da confusão em torno do desejo.
O desafio é justamente esse: não deixar que a exceção barulhenta esconda a regra silenciosa. Não transformar fenômenos reais — mas marginais — em narrativas absolutas. E não esquecer que, por trás dos discursos e dos medos, ainda somos seres humanos tentando, com mais ou menos habilidade, encontrar sentido e aconchego no outro.
Me dediquei para escrever este texto, mesmo não sendo um exímio escritor. Ainda é uma forma rasa de interpretação, mas escrever tem me feito bem — tem me ajudado a lidar. Pensar demais estava se tornando um peso, então esse blog acabou virando um refúgio (ainda que eu relute em chamá-lo assim). Colocar meus pensamentos no mundo tem trazido algum conforto.
Agradeço a quem leu até aqui, mesmo com todos os possíveis erros, análises falhas ou interpretações exageradas. Talvez eu tenha complicado o que era simples, ou simplificado o que merecia mais profundidade. Ainda assim, se você chegou até o final, obrigado. De verdade.