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Suzane von Richthofen e Elize Matsunaga em alta: quem lucra com o espetáculo do Tremembé

Henrique Reis
Publicado em 4 de novembro de 2025• Atualizado em 4 de novembro de 20255 min de leitura
Casos como os de Suzane von Richthofen e Elize Matsunaga não voltam à mídia por acaso. São produtos de uma engrenagem complexa — a indústria da atenção — que transforma tragédia em narrativa, sofrimento em lucro e assassinos em personagens. A nova série sobre “Tremembé” não apenas revisita o passado: ela o reempacota para consumo, traduz o horror em formato e o drama em audiência. O público assiste, comenta e compartilha. Quando a produção baseada em Tremembé estreou, as métricas reagiram instantaneamente: picos de busca, vídeos de reação, debates em rede, menções a cada minuto. O curioso é que o caso não era novo — apenas a embalagem mudou. O mesmo crime reapareceu com nova estética, trilha sonora e enquadramento. E isso basta. Assistimos não para conhecer, mas para reexperimentar. Para revisitar o conhecido com nova emoção. A curiosidade se disfarça de interesse histórico, mas o que alimenta o engajamento é o ritual coletivo da reexibição. O público revive o caso como se fosse uma estreia. E nesse processo, todos — espectadores, jornalistas, roteiristas e plataformas — participam da mesma engrenagem. A mídia não é uma abstração. É feita por pessoas que editam, escolhem e hierarquizam. Que decidem o que será omitido e o que será repetido até se tornar verdade. Quando o foco abandona as vítimas e se volta para o réu, o noticiário se converte em produto. E quando o produto dá lucro, vira formato replicável. O processo é quase técnico: selecionar o caso mais vendável, moldar um roteiro emocional, escolher falas que reforcem o conflito e, por fim, impulsionar o material no algoritmo. O resultado é previsível: o crime vira entretenimento, e a violência ganha replay. O que poderia ser reflexão vira rotina de consumo. A prisão vira cenário, o jornalista atua como narrador e a dor humana se transforma em combustível de engajamento. Cada nova produção precisa de personagens. E assim nascem os arquétipos da tragédia midiática:
a “moça de classe média que se perdeu”, a “mãe traída e vingativa”, o “crime impossível de entender”. São moldes que simplificam a realidade e dão ao público uma sensação de domínio moral. Entender o crime passa a ser uma forma de controle emocional.
Mas há duas armadilhas aqui.
A primeira é confundir compreensão com absolvição — explicar o crime não é justificar o criminoso.
A segunda é o desaparecimento das vítimas: viram figurantes de uma história que nunca pediram para protagonizar.
A mídia, ao dramatizar, muitas vezes cria versões mais palatáveis que a realidade. Documentários mal revisados, entrevistas enviesadas e roteiros de “exclusivos” reforçam a crença de que estamos diante da verdade. No entanto, o que se vê é uma construção cuidadosamente dirigida para emocionar — não para esclarecer. Há números por trás da empatia. Plataformas de streaming sabem o que funciona: crimes reais geram longas horas de exibição, alto engajamento e forte retenção de público. É uma das categorias mais lucrativas do catálogo. Dahmer, por exemplo, somou mais de 1 bilhão de horas assistidas. No Brasil, qualquer obra que mencione Tremembé repete o fenômeno. O investimento é mínimo, o retorno é alto e o impacto humano raramente entra na conta. Os mecanismos são claros:
  • O caso é reeditado e divulgado.
  • O público comenta, pesquisa e compartilha.
  • O interesse gera novos programas, análises e debates.
  • Cada clique alimenta o ciclo — e a tragédia continua rendendo.
Nesse sistema, o público não é apenas consumidor. É parte do processo produtivo. A atenção se converte em dado, o dado vira lucro e o lucro justifica a próxima reedição. É uma economia movida por sofrimento humano. Consumimos por medo, curiosidade e também por moral. Queremos entender o mal, mas também sentir o alívio de não sermos parte dele. O resultado é uma catarse ambígua: o público se comove e, ao mesmo tempo, se sente superior. A cada novo episódio, repetimos o papel de juízes de sofá. As redes sociais se tornam tribunais sem regras. Comentamos, condenamos e absolvemos com a mesma pressa com que trocamos de aba.
E enquanto acreditamos estar analisando, somos analisados — nossos padrões de engajamento alimentam os próximos lançamentos.
O público é, simultaneamente, vítima da manipulação emocional e motor da engrenagem. É o espectador que mantém o palco aceso. Nos títulos, nas thumbnails e nos roteiros, o rosto do agressor ocupa o centro da narrativa. A vítima, quando aparece, é lembrança distante.
As famílias, por sua vez, revivem a dor sem consentimento, vendo o trauma se tornar produto.
Essa omissão não é casual: a vítima é incômoda porque não vende bem. Ela nos força a confrontar o real. O criminoso, ao contrário, é mais rentável — tem mistério, expressão, conflito. A lente o favorece.
É nesse desequilíbrio que o sensacionalismo prospera.
O presídio de Tremembé virou mais do que um local físico. Tornou-se um símbolo da relação entre crime e audiência. A cada nova série, reportagem ou entrevista, repete-se o mesmo movimento: a dor é reciclada, o interesse se renova e o ciclo de monetização recomeça. Se suas redes sociais estão te levando a mais conteúdos assim, se suas recomendações de séries giram em torno de tragédias, é preciso refletir sobre o tipo de máquina que você está alimentando.
Isso não é um julgamento moral, mas uma constatação ética: cada visualização, cada compartilhamento, cada clique reforça o sistema que transforma sofrimento em mercadoria.
Basta observar as manchetes que mais atraem cliques — títulos que flertam com o grotesco, que trocam empatia por impacto. Esse padrão não é acidental: é calibrado para capturar atenção. E nós, distraídos, seguimos colaborando. O resultado é uma cultura que normaliza a exploração da dor.
O público acredita estar sendo informado, quando na verdade é conduzido por algoritmos e narrativas que priorizam engajamento sobre verdade.
Consumir criticamente é o primeiro passo. Parar de naturalizar a tragédia é o segundo. Porque enquanto houver quem assista sem questionar, haverá quem continue lucrando com o horror.
E, talvez, o verdadeiro cárcere de Tremembé não esteja nos muros do presídio — mas na complacência de quem o assiste.
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